O treino de tática é essencial para o jogador de xadrez que deseja evoluir no jogo, principalmente para jogadores em uma faixa de rating até 2000, mas eu diria que até 2200, o treino tático é essencial.
Hoje é muito fácil treinar tática. Sites como ChessTempo e Lichess oferecem centenas de milhares de problemas para jogadores de todos os níveis, que cobrem todos os temas táticos do xadrez, e envolvem várias situações de jogo, inclusive finais. Por exemplo, hoje, 15 de janeiro de 2025, o Lichess conta com mais de 4,6 milhões de problemas táticos, todos gratuitos. Vamos analisar como o Lichess gera esses problemas.
Em geral, o Lichess pega posições de sua própria base de dados de partidas jogadas no próprio site, e busca momentos em que um dos jogadores cometeu um erro grave, em geral, uma partida que estava igualada e um jogador comete um erro que dá vantagem de pelo menos 3 pontos para o outro jogador na avaliação do Stockfish, um programa de cálculo em xadrez e avaliação de posições. Ou seja, a grande maioria dos problemas é gerado automaticamente por computador de partidas entre jogadores dos mais diversos níveis. O processo é semelhante para qualquer site de xadrez.
Isso em si não é um problema. Longe de ser algo ruim para o xadrez, a democratização dos meios de estudo e treino é excelente! Se fosse um processo manual, jamais haveria 4,6 milhões de problemas em uma base gratuita. Porém, há um pequeno detalhe: alguns desses problemas são, no mínimo, estranhos.
O problema da geração automática dos sites
Creio que um exemplo vale mais do que qualquer explicação. Observe a seguir.
Este é um exemplo retirado de um problema de nível 2266 no Lichess.
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Jogam as brancas e vencem |
Após 1. Df7+ Rd8 2. Ba5+ b6 3. Cxb6+–, o Lichess simplesmente para aqui e diz que o problema foi solucionado. Mas ainda importante é calcular o restante do problema frente às diferentes reações das negras. Por quê? Essa é a posição:
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Aqui o Lichess já considera solucionado |
Está bastante óbvio que depois de 3...axb6 4.Bxb6+ as negras perdem a dama e ficam com desvantagem material. Mas e se as negras não jogarem 3...axb6?
Elas podem jogar simplesmente 3...De8. Qual é a solução então? Tudo bem, quase qualquer coisa aqui ganha para as brancas, desde que elas movam o cavalo. Mas a melhor sequência segundo o computador é 4.Cc4+ Rd7 5.Df4 ameaçando mate, 5...Rc6 6.Dc7+ Rb5 7.b4+– criando uma rede de mate.
Mas percebe que o problema não é tão simples assim? Mas o site o tornou simples. O jogador vai acertar essa parte e vai pular para o próximo problema achando que está tudo certo com a visão tática dele. Mas ele não calculou todos os lances, apenas os três primeiros, o que ainda é muito pouco.
Tudo bem, nessa posição do exemplo, quase qualquer lance com o cavalo de b6 vence depois de 3...Qe8, como tomar a torre com xeque. Mas em alguns casos não vai ser assim. Na verdade, a posição resultante pode ser até difícil demais de vencer em linhas como essa, onde algumas vezes teremos apenas uma pequena vantagem material, como uma qualidade a mais, quando não deveria ser assim.
Vamos a mais um exemplo que aconteceu no Chess.com (problema #34407 da base deles).
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Jogam as brancas e vencem |
Na posição acima, passei um tempão calculando diversas variantes após 1.Tbc1!, mas quando fiz o primeiro lance, o site já considerou solucionado. Um único lance! E o rating do problema era 1953. Isso acontece porque não tem uma única variante melhor para as negras continuarem, pois podem jogar tanto 1...Df5 quanto 1...Db2. Ok, mas como proceder em cada caso? O estudante apenas segue adiante sem provar que sabe o restante.
Vou deixar as possíveis continuações como exercício para o leitor. Você pode conferir a solução no fim deste artigo.
Portanto, para iniciantes, um dos maiores problemas com o treino de tática online é a possibilidade de adivinhar os lances sem ter calculado tudo corretamente. Nesse caso, o site às vezes acaba dando uma “ajudinha” ao usuário, mostrando-lhe apenas a linha principal (que muitas vezes pode nem ter sido calculada pelo jogador).
Além disso, vamos supor que o problema proposto exija apenas três lances, mas que a posição crítica ocorre cinco ou seis lances na frente. Do ponto de vista do site, você agiu corretamente ao responder os três primeiros lances, mas do ponto de vista de treinamento, você vai apenas passar adiante para o próximo exercício sem saber como proceder na posição resultante. Isso já aconteceu comigo muitas vezes. Alguns problemas acabavam com material igual inclusive, mas com uma posição ganha cuja vantagem material só se realizaria mais à frente, mas eu não tinha sido capaz de visualizar isso.
Motivos para usar livros
Pensando nisso, aqui estão seis motivos para treinar com um bom livro de tática.
1. Organização no aprendizado
Em um bom livro de problemas táticos, os problemas são selecionados cuidadosamente por especialistas para oferecer uma ordem sistemática de aprendizado. Em geral eles começam com problemas mais simples e aos poucos sobem o nível de dificuldade. Em sites, o algoritmo vai te dar um nível estimado de rating e oferecer problemas próximos daquele nível.
Também é possível selecionar problemas por tema, mas os problemas são meio que aleatórios, e ainda podem cair no problema citado lá em cima. Se seu objetivo for apenas treinar achar o melhor lance proposto pelo computador, tudo bem, mas se você quiser evoluir no menor tempo possível, livros são obrigatórios.
2. Ênfase em temas e na repetição
Livros de tática geralmente agrupam os problemas por temas, e a maioria deles pede que você repita os exercícios de tempos em tempos, como uma revisão (como é o caso do livro The Woodpecker Method). As plataformas online até oferecem um treino por temas, mas em geral você precisa filtrar os problemas, e novamente, eles serão oferecidos aleatoriamente.
3. Qualidade x Quantidade
Por serem selecionados manualmente a partir de jogos notáveis entre grandes jogadores, os autores de bons livros de tática podem exercer um controle de qualidade rigoroso sobre o que oferecem. Cada problema geralmente traz um alto valor instrutivo, destacando ideias e padrões críticos.
Nas plataformas online, por serem gerados automaticamente pela base do próprio site, os problemas podem ter qualidade inferior ou serem menos claros ou instrutivos.
4. Profundidade de pensamento
Ao treinar com livros, muito provavelmente você terá que usar um tabuleiro real (ou mental!) e calcular mentalmente, trabalhando seu cálculo e sua visualização sem mexer nas peças, como em uma partida presencial real.
As plataformas online podem deixar você mal acostumado, pois em geral você pode usar recursos visuais como setinhas coloridas e destacar casas. Além disso, se você pretende jogar em torneios presenciais, precisa se acostumar com um tabuleiro físico.
5. Sem dependência e distrações de telas
Ao estudar com livros, você não precisa de uma conexão de internet em tempo real. Se você tiver o livro físico, ainda melhor: não precisa se preocupar com bateria ou com o cansaço mental e visual que uma tela produz.
Se você estudar um e-book, ainda terá de lidar com telas, é verdade. Mas há uma excelente forma de evitar o cansaço e as distrações: use um Kindle.
Se você não pode ter um Kindle, desenvolva uma boa disciplina para não se distrair com redes sociais ou qualquer outra coisa.
6. Revisão
É muito fácil marcar os problemas nos quais você teve dificuldade e revisar depois. Se você tiver o livro físico, melhor ainda, pode fazer uma anotação na margem, por exemplo. Vai ser muito fácil de encontrar o problema e revisá-lo para melhor compreender e internalizar os conceitos.
Mesmo que você esqueça de marcar, a chance de se deparar com aquele problema é muito maior, basta revisitar aquela página específica. Online, a menos que a plataforma tenha algum recurso de salvar um problema, você jamais verá aquela posição novamente.
Então só devo usar livros?
Não necessariamente. Como vimos, os livros ainda são o melhor (e mais curto) caminho para a maestria. Mas se você não possui acesso a livros, você deve, sim, usar as ferramentas oferecidas pelas plataformas online. Elas ainda são muito úteis, só não são o melhor caminho para um treino bem estruturado, pelo menos no início.
Claro, treinar com essas ferramentas tecnológicas é excelente em termos de velocidade e volume, mas creio que isso só faz diferença quando você está em um nível já mais avançado, talvez depois dos 2000 de rating.
Contudo, o mais importante é TREINAR! Não importa como, apenas comece. Não fique para trás.
Renan
Antes que eu me esqueça, clique no botão abaixo para revelar a solução do exercício do Chess.com mencionado acima.
Realmente, não havia pensado por esse lado. Acho que para iniciantes ainda podemos acrescentar que o livro educa a notação e memorização das casas. Obrigado pela reflexão
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